Friday, April 6, 2007

Errância



Naquele invernoso entardecer, em lugarejo bravio, junto à estrada bordejada pelas penedias, a natureza em transe mais parecia um inferno frio e feio. Exausto, entristecido, Folião enroscou-se ainda mais, no meio de umas silvas. Porém, antes assim, ao relento, do que ceder, cheio de vergonha, à desdita que o havia posto em tal situação, deslocado entre o destino e a existência. A simples consciência funesta era-lhe insuportável. E sofria, no próprio corpo, as consequências do infortúnio.

O dorso de Folião foi sacudido, ao espirrar em convulsão. Os bigodes ficaram todos húmidos, e não era capaz de controlá-los. Além disso, famélico e sedento, com os rins arrebentados, tinha urinado sem querer pelo pêlo e na terra em volta, que em vão tentou limpar com a patita.
Folião era apenas um gato pingado, com o rabo entre as pernas. A sua história começa com o princípio do mundo.
16MAR2007

Presença



Alvoroçada, arfante, Leónia raspou, então, ambas as garras pelo rosto, do qual escorria aquela amálgama de porcarias, suores e de pêlos. Dolorida, contaminada. Instantes depois, recobrava o ânimo, enquanto ia passando as que já eram mãos por todo o corpo, até tornear em si a forma humana.

Lambeu, com uma última delícia de animal, os lábios ainda entumecidos, onde havia alguns resquícios do sangue que, pouco antes, regurgitava pelo pescoço da sua vítima. Os dentes que lhe cravara, com o frenesim de predador, tinham-se reduzido ao aspecto banal num facies feminino.

Além da bruma densa que castrava o olhar furtivo de Leónia, o espesso matagal permitia-lhe escapar a qualquer assalto de surpresa ou curiosidade. Compôs-se, pois, com os andrajos esfarrapados que lhe restavam, disfarçando a loba ávida sob uma felina sensualidade, que lhe era tão natural.
15MAR2007

Substância



Havia uma terra vulgar, de gentes comuns, de animais normais, de plantas banais, sem algo que a distinguisse ou distanciasse. Ninguém dali saiu ou foi para lá, jamais se ouviu falar de tal sítio, nunca faria que valesse a pena. Tudo nascia e crescia de modo habitual, nada deixava de morrer como de costume. Não tinha nome ou sequer profundidade. Situava-se até onde ela existia, o céu que a acobertava parecia sempre igual. E, se apenas colhia uma realidade, entre as várias mas habituais vivências, nem memória poderia suscitar, pela qual se estimulasse um futuro.


Presumia um presente, constituía uma presença.


Ora, sobre essa naturalidade, eis que avulta um imprevisto. Paira um pássaro de ferro – que lhe perturba a nitidez, que lhe altera o clima. Estranho, inevitável. Largando nuvens, gerando névoas, cobrindo-a com um denso manto da noite... Talvez um dia não esteja, talvez a terra volte a ser pura e simplesmente.
09MAR2007

Iridescência

É como um arco-íris que escorrega do céu e, esmaecendo, se entranha pela terra adentro, para deixar à superfície uma aura indecisa de luz e cor.

O que encontra no seu negro auge de penetração – em que se transforma? O que deixa no desgaste rubro da sua agonia – será um novo resplendor?

Entre a magnitude e a melancolia, tinge-se o olhar no efémero dilema duma divagação. Matéria etérea, latejam todas as coisas feitas dum silêncio musical.

Crepúsculo, alvorada. Sempre com o mesmo perfil – implícito, indefinido – duma cíclica mutação. Esboçando o tempo, esvaindo a forma. Virtual. Eventual.

Espaço, presença. A distância permanece. Anseia a proximidade. No fausto mágico em que a realidade se suspende – fenómeno anterior, interior fascínio.
07MAR2007

Passagens



Em frente, é o caminho – perante o céu azul, como a esperança; erguendo as bandeiras cor do sangue, que nos faz viver; levando os cravos também vermelhos, símbolos entretanto memórias.


Entre tantos, partilhamos emoções, reivindicamos – mulheres desabrochadas de tantas dores e dádivas, eivados velhos num frémito de expectativa solidária, homens escavados da sua força, protecção da família e pão para a boca.
Jovens que ainda esboçam um sorriso colorido e colectivo. Gentes de todas as idades e de todos os tempos – irmanadas entre o silêncio da entrega e o soluço da partilha.


Uma língua de ritmos e coros, de carne e fogo que alastra pelas ruas. Instiga um destino, investe para um amanhã. Participa no mesmo sonho, reuniu-a todas as lutas.


Alguns, outros – das varandas, nos passeios – assistem e vêem passar, imaginam que vão para a festa.
02MAR2007

Aranhas



Uma névoa enovela a cortina de olhares: quem espreita para além de si, pondo à mostra a sua imagem?


A indiscrição é um olhar mudo no auge do pasmo, tecendo o indescritível. E, quando a retina óptica não basta, abastece-se a exibição com a máquina fotográfica.


Assim, o processo mecânico reproduzirá, fielmente, o instante exposto. Mas o flagrante, que trai a atenção humana, também atrai noutros motivos de observação.


Ansiedade, expectativa. Quem guarda o momento efémero, acaso aguarda o movimento que o defina?


Quem vigia, divaga? Ver, virá para o caso?


A curiosidade é um reflexo natural? Ou o predador visado enreda-se na própria teia de aparências e artifícios?


Aliás, reparando bem: a aranha antecipa o seu festim? Ou a vítima precipita a caça?
01MAR2007

Calçada



Solitário, jaz em cima do passeio. E, sobre ele, caminha gente indiferente. Repassam outros de regresso, ou que falharam o seu destino. Talvez os que o pisam cabisbaixos reparem nele.


É um aviso. Um vulto vítima. Um recorte de pessoa sem contornos regulares. Tracejado ao estilo dum alerta próximo e urgente, mas rápido e fortuito. Vamos lá ver se adiantou alguma coisa.


Depende da qualidade da tinta, sua definição vital. Da resistência a quantos o calcarem, sua motivação virtual. Reveste, aliás, um desígnio indelével – deixar marcas nos que transitam.


Está de rastos? Em pose oblíqua? Em postura equívoca?


Porque será? Quem o fixou? Sujeito acaso em lugar errado?


Valerá de alguma coisa? Ainda foi para ali a tempo?


Tem tantas letras, mas dá poucos sinais de si. Será aquela mancha no peito. O coração, parece. Esvaído, talvez nem sinta. Sem ânimo, sem relevo. Latejando, irrelevante, na calçada.
16FEV2007

Mutações



Sôfrega, a serpente de fogo lambe a crosta terrestre. Coleando sempre na horizontal, absorve toda a vida húmida. Interminável, torna este mundo um informe inferno.


É vistosa, luxuriante, arrepia. Precede-a uma lufada quente. Deixa cinzas, escombros, resíduos calcinados. No arfar das labaredas, leva consigo o elã virtual, fauna e flora.


Crepitam as chamas, com energia própria. É o capricho, já, de um monstro múltiplo, mutante, que no voraz mar de lume se consome e se consuma. Então, o braseiro alastra.


Só o homem emerge dos escombros ardentes. Magma e furor. Estrebucha, alardeia, vocifera, implora. Feito da costela ígnea, por espasmo de algum deus vulcânico.

Talvez o mesmo que lançou o anel de lava, de que a serpente se soltou a flamejar. Talvez uma criança enlouquecida, com a alma a queimar. Talvez um velho anjo em cremação.


15FEV2007

Premissas


Sempre, todas as chaminés estão viradas para o céu. Acaso a indústria aspirará à divindade? Os seres etéreos porventura respirarão monóxido de carbono?
O que correrá pelas tubagens industriais? Será o petróleo uma espécie de sangue fabril? As veias parecem estradas para o coração do homem.

O caminho para o progresso constrói-se em frente. No futuro, as árvores serão metálicas? Na lâmina do horizonte, cada um estará de costas para quem o segue?

A perspectiva forjada estrangulará as distâncias? Em linha recta artificial, quem descobrirá o seu objectivo? Cada lance de jornada prolonga as referências do destino.

Passo a passo, o instante reflectido é a memória do anterior. Que experiências próprias sobreviverão de um percurso uniforme? Terá cor a sequência monótona?
12FEV2007

Desígnios



Entre luzes e sombras. O sol reflecte, a noite transfigura.

Perpetuando glórias. Instituindo graças. Consagrando promessas. Congregando crenças. Estabelecendo cultos.

Planos, matrizes. Solos, alicerces. Colunas, claustros. Volumes, projecções. Pormenores, referências. Ideais, estilos. Austeridade, magnificência.

Homens, heróis, nobres, guerreiros, mártires, santos, fiéis, patronos, arquitectos, operários, sacerdotes, devotos, fantasmas, turistas. Virtuosos, visionários.

A nave imaginária. Intensa, intemporal.

Obra feita, ruína perfeita. Consumação, contemplação. A história, lida pedra a pedra.

Pelos séculos. Para sempre?

A mão humana virada para o Alto. E o olhar do Céu, que a tudo assiste?

07FEV2007

Persistência


É de metal fundido com a carne e o sangue dos que aqui subviveram. Produz um som tão cavo e fatal como o estilhaçar de ossos à bordoada e espadeirada.

Patenteia-se o fabricante. Não tem o nome dos artesãos que o modelaram entre suores e labaredas, ou que o timbraram até ficarem duros de ouvido.

Sobranceiro em quanto avista ou de onde poderia ser escutado. Quebrando o silêncio sobrenatural de místicos ou de guerreiros numa terra em transe.

Ora, talvez nunca em redor se combatesse. Nem agricultores amanhassem a fome, nem mulheres arranhassem o ventre, nem crianças alimentassem exércitos.

Porém um tal castelo, e mesmo que esta fosse uma torre para o céu… Quem ergueu, quem badalou um signo suspenso na altura de todas as inquietações?
06FEV2007

Monday, March 19, 2007

Alcances


Tal o capricho da natureza, a origem é um mistério. De onde existem sementes, na escuridão vegetal. Como nascem plantas. Para que brotam ramos, espasmos de luz cromática.
Ainda és jovem rebento. Hás-de crescer. Tronco forte, terás filhotes como tu. E, embriagado pelo despeito de não te atingir, dirá um miúdo ao engano: São verdes, não prestam.Apenas um nó com pétalas de roxo/azul, em fileira de tonalidades esverdeadas. Sobre fundo negro. Uns botões alvos, na ponta, por abrir. E alguns espinhos, para o que der e vier.Estás ao alcance da mão. Poderei chegar-te. Desfolhar-te, desflorar-te. Serás apenas uma haste nua. Crescerás ferida, sem graça. Nessa altura eu estarei mirrado. Incapaz de ti. Aparece de algures. Faz-se à imagem. Em ramalhete, falta-lhe tocar o outro lado. Não passa de uma ponta pendente. Flora animada, jóia abstracta. O que for, logo se verá.
02FEV2007

Alternativas



Com graciosidade, traça um risco contínuo através da vastidão etérea. Em breve se esbaterá. Mas entre o acto de ousar e a oclusão do rasto, exibe-se a volúpia do instante. Como se olhar suspendesse em foto fixa a vertigem da velocidade.Perícia de piloto. Domínio da mecânica. E o estro humano a ganhar asas numa acrobacia da existência. Poder sensoriar a sensação de poder.
Investindo para o vazio tendo em frente um desafio nebuloso.E em paralelo, de alto a baixo, o suplemento das equivalências. Ser visto e promover. Voar, marca e veículo. Planar em outro plano, a quatro rodas. Sugerir o prodígio duma condução sem distâncias, sem limites.Terá a extensão do céu algum destino? Terá o estímulo da velocidade alguma origem? Que pernas se fazem à estrada? Que braços se suspendem do infinito?

31JAN2007

Thursday, February 15, 2007

Reflexos

De quando nasce, e até à foz, consuma o rio um destino essencial: nasceu gota, morre em mar. Entretanto, definiu o seu trajecto: escorre por declives, acumula-se até transpor obstáculos. Às vezes, desfaz-se em cascatas. Logo recupera o leito virtual. Em certas épocas, tal é a seca que quase se esvai. Porém, a terra mantém as feridas da sua passagem, conserva os sulcos que a serpenteiam, para novas torrentes e enchentes. O caudal é a alma do rio: ainda outras vezes, alaga as margens, tudo inunda.

Nunca um rio será árido nem tédio: pode atenuar-se mas, por vocação, garante o solo arável.

E nada há mais cativante que um reflexo em suas águas, sobre a aparência estática. Esse espelho líquido em caprichos de traços, manchas, cores – e em que a imagem das pessoas se distorce, espalha, divaga... Vistas assim, é como se estivessem de pernas para o ar. Enquanto que, submersos, agitam-se os monstros.

30JAN2007

Vestígios


Perdidos no deserto, há pés que se esvaem na areia, antes que o mar dissolva os corpos que encaminham através da exaustão. Todas as distâncias têm um dispêndio, é líquido que todas as costas têm um custo, para quem ousar o alcance em que se narra a fímbria que separa entre terra e água. E, se a quem nada, nada de bom aguarda, almejando o abismo, quebrar a obstinação das serras encerra o prazer de cortar ondas, na expectativa de uma estrada plana. O olhar que vê ao fundo, distinguindo vultos semoventes, entre a espuma e as rochas, contempla a mesma equidistância da sua fixação pelo balanceio alheio. E afinal estes vestígios, traçados em solo movediço, firmam também um percurso a solo, já transcrito. Até que uma vaga os torne imperceptíveis, diluindo para sempre a sua efémera passagem... Quem formulou um sentido para tais palavras? Quem procurou algo em algures, permanecendo suspenso num instante?

29JAN2007

História


A história faz-se entre monumentos do passado e vestígios do presente. Pedras que eternizam feitos, ruínas que simbolizam factos. Uma memória construída para o esplendor, uma janela aberta para o futuro. As sombras que se projectam numa parede descarnada já de estilos, de inscrições. A dimensão que se recorta num rectângulo possível para o azul, para o vazio.

Que heróis deixaram que contar, que mãos de homens ergueram tal aparência na paisagem? Como se adensou um tal negrume reflectido, contrastado na abertura ante um céu imponderável?

Porque quiseram alguns prevalecer, entre mitos e misticismos?

Como lograrão outros permanecer, os transitórios e visionários?

– Armei-me, avassalei e, sobre tudo, conquistei. Eis a prova de que estive neste mundo, o testemunho da minha glória.

– Amarei, abalarei e, sobretudo, encantarei. Eis o tempo despojado de um olhar, a matéria etérea do meu imaginário.

25JAN2007

Tuesday, January 30, 2007

Regresso



Nunca esquecerei o dia em que parti, ao lado de meu pai. Junto dele, criança, levado pela sua mão. Antes disso, a mãe deu-me um beijo e, no coração, pôs-me um desejo de voltar.

Foi marca que me sangrou, para sempre, com as memórias bárbaras, perdidas pelas partidas do mundo. Saído de minh’aldeia natal, já sozinho chorei a bordo dum vapor que me levava, ignorava eu para onde. Lá, no tal destino, estava um tio à minha espera, para me dar trabalho e verdejar a maturidade. Depois, precoce adulto, fiz-me à aventura qual emigrante sem paradeiro – desvirginando todas as selvas, esgravatando à unha todos os filões, construindo cidades para outros. Não tive descanso nem remorso. Desalmado, inumano. Em frente. Escravizei, desenraizei. Possuí, desapossei. Sem nada. Envilecendo, envelhecendo com o único tesouro de uma ânsia primordial.

Regresso a casa. Àquela infância, ou nesta actualidade?

24JAN2007

Cansaço

Todos os caminhos vão dar a qualquer parte. Todos os pés precedem passos. Todos os passeios já foram percorridos. Todos os bancos retemperam dos cansaços.

Ainda há destinos que se encontram com entraves. Ainda há rumos que não foram construídos. Ainda há pernas vergadas pelo esforço. Ainda há corpos anónimos, perdidos.

Nesta cidade contrafeita pela pressa. Nesta cidade que tem dentro as suas margens. Nesta cidade virada contra o tempo. Nesta cidade em labirintos e muralhas.

Uma sombra acolhe-nos por fim. Uma réstia de luz traça um princípio. Uma espera traz consigo solidão ou refúgio. Uma paragem silencia a voz do precipício.

Porque nem sempre as palavras dizem tudo. Porque nem sempre é ausência o que se poisa. Porque nem sempre sente quem se senta. Porque nem sempre o olhar desvenda alguma coisa.

José de Matos Cruz 22JAN2007

Pesqueiro

Imperceptível, sob o espelho líquido, mantém ainda a âncora. Mas já sem préstimo, perdida entre o lodo, inerte e corroída. As suas verdadeiras amarras são, agora, a própria degradação de um corpo gracioso, necessário, que sulcava as ondas e atraía o peixe. Ali abandonado, sem homens e sem fainas, ao sabor funesto das marés entre o rio e o mar. Entretanto, o casco corrompeu-se. A água entrou a bordo, tudo foi invadindo, destruiu-lhe as entranhas. Precário, acabou por ceder, apenas meio submerso junto à margem pouco profunda. Aquele túmulo incompleto, volúvel. Perto de areias e pedras poluídas.

Que terrível desolação. À distância, do outro lado, persiste a vivência e a labuta. Uma vista colorida, mutante, indiferente, através dos raios de sol e das luzes à noite. Através das brumas, dos ventos, das chuvas, das tardes, dos tempos, inútil, lança o seu lamento silencioso. Pode um barco ceder, cegar?

José de Matos Cruz 19JAN2007

Cadeira

Trinta anos. Suponhamos que fico trinta anos aqui, assim, sem que me venham retirar. O que poderá acontecer? Ora, estarei decrépita, ferrugenta, já sem cor nem lona, uma mera carcaça asquerosa. Provavelmente não existirei mesmo, nem as árvores nem o pequeno lago à minha frente.

Trinta horas. Há umas trinta horas que me armaram, realçando esta paisagem aprazível mas tão solitária. Durante a noite, abandonaram-me. Cheguei a recear que me tivessem esquecido. Com os humanos nunca se sabe, e eu só posso exibir a minha elegância, o melhor do meu aspecto.

Trinta minutos. Hoje, finalmente, ao princípio da tarde, chegou um sujeito e sentou-se. Em calções, acabado de almoçar. Gozando o sol. Depois, levantou-se calmamente. Foi até junto da margem, molhou o pé esquerdo e, destemido, mergulhou. Há trinta minutos que não aparece à tona d’água.

José de Matos Cruz 17JAN2007

Horizonte

Com um olhar múltiplo, procuro em vão a linha do horizonte. Ou um destino até onde hei-de ir. Ciente, cismo que todas as proximidades têm o alcance das maiores distâncias. Aqui, em quanto avisto, a paisagem é um desígnio paralelo de oportunidades aparentes. Céu e terra fundem-se no mesmo logro de uma natureza apenas, inequívoca, de texturas sobrepostas em contrastes e tonalidades. Diluindo-se para o etéreo, obscurecendo no que me é mais cerca. Além da alusão, persiste um azul de neurastenia, esvaindo-se, caprichoso. Aquém da ilusão, mal se distingue a fisionomia densa, estigmatizada de relevos, socalcos e, talvez, uma estrada. O firmamento corresponde à mística fortuita de umas quantas nuvens – quais franjas esbranquiçadas – pairando, a espairecer. A complexidade que me apela à vida está nos sucessivos recortes de montanha – as alturas, os abismos – a confrontar-me o imaginário e a jornada.

José de Matos Cruz 16JAN2007

Árvore

Ainda não sou – senão uma minúscula semente, dispersa, esparsa, com alguma origem e sem qualquer destino. Depois, ao acaso, o meu voo suspende-se, e caio sobre a terra. Entranho-me. Em torpor, ganho vulto e pulsação. Emirjo do subsolo. Eis-me a respirar. A minha seiva impele-me. Cresço. Faço-me vulto, irradio em ramos. Enrijeço. Visto-me de folhas – exuberante e exposta. Passam a notar-me. Ao sol, extasio. Com outras árvores irmanada, a minha sombra recorta-se na relva. Frondosa, habitam-me os pássaros. Habituo-me. Desafio a tempestade, quase me verga. Resisto. Assim, estou. Envelheço e permaneço, estiolando, num torpor sem tempo. Enfim, retraio-me – disforme, coberta de fungos e de musgo. Ávida e farta, esmoreço. Começo a definhar. A partir das raízes exaustas. O tronco seca-me, estala. Restam-me uns braços esqueléticos. Nua, em vertigem – soçobro, sucumbo. Enquanto estou, existirei.

José de Matos Cruz 14JAN2007